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AUTOR


ÍNDICE TEMÁTICO 
64
Ter remoto Pensamentos em tempos pandêmicos
ano XXXII - Junho de 2020
163 páginas
capa: Augusto de Campos
  
 

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Autor(es)
Ana Helena de Staal
é psicanalista e psicossomatista, membro da Société de Psychanalyse Freudienne (spf). Ex-chefe de edição da revista Chimères, fundada por G. Deleuze e F. Guattari, ela dirige atualmente Ithaque, editora parisiense especializada em psicanálise e filosofia. Ela traduziu e publicou em francês a maior parte dos seminários de W. R. Bion, assim como o trabalho de autores contemporâneos importantes como Christopher Bollas, Thomas Ogden e André Green. Vive e trabalha em Paris.    

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Maurice Dayan (1935-2020), um psicanalista no ápice

Ana Helena de Staal

Maurice Dayan morreu no dia 2 de maio de 2020, em Paris. Tinha 85 anos de idade. No triste contexto da pandemia e com o confinamento então em vigor, as cerimônias e homenagens foram limitadas ao estrito círculo familiar. Escrever algumas palavras sobre ele é para mim uma maneira de me despedir deste brilhante e exigente psicanalista, que conheci bastante tarde, mas que rapidamente se tornou um autor da Ithaque, minha editora em Paris, antes de tornar-se um semelhante, um amigo, e finalmente... meu vizinho.

Conheci Maurice Dayan há dez anos atrás, em uma época em que a psicanálise já andava perdendo suas cores radiantes de rainha do baile (de intelectuais) e se tornando uma espécie de Cinderela esperando ser redescoberta.

No campo das publicações, desinvestindo pouco a pouco a psicanálise, da qual havia sido uma das editoras históricas da França, a Puf, Presses universitaires de France, começara a transformar grande parte de seu catálogo em pasta de papel; a ideia era tornar os estoques mais fluidos, liberar metros cúbicos de armazéns e reconstruir sua saúde em um entorno econômico que agora rezava pela cartilha do virtual e da produção otimizada. Obviamente. A especulação imobiliária estava no auge e setores inteiros da indústria editorial de escoamento lento só poderiam operar sob a forma de publicação sob encomenda. Logo, e no decorrer década seguinte, toda a produção psicanalítica se encontraria na mira de gestores eficazes para os quais a disciplina havia deixado de ser rentável.

 

O sonho que nos sonha...

Foi neste contexto difícil, no final de 2009, que conheci Maurice Dayan. Encontramo-nos pela primeira vez no Café du Rendez-vous, na praça Denfert-Rochereau em Paris, por sugestão da psicanalista Françoise Gertler. Motivo: sem sequer avisá-lo, a Puf, editora da obra de Dayan, tinha começado a comprimir os exemplares não vendidos de seu livro mais importante, Le rêve nous pense-t-il? O autor ficara sabendo por acaso quando de uma conferência sobre o tema do livro. Os exemplares impressos em 2004 tinham sido destruídos em 2009, exatamente dentro do prazo contratual de cinco anos dado ao autor para fazer de seu livro um sucesso... ou desaparecer. (O que teria sido da psicanálise, se esta cláusula tivesse sido aplicada à Interpretação dos Sonhos, de Freud, que chegou às mãos de poucos eleitos e só vendeu dez exemplares na época de sua publicação?) O problema era sério; este homem discreto e elegante, de extrema cortesia e delicadeza, estava arrasado. O que poderíamos fazer? Reimprimi-lo na Ithaque, em uma edição revisada e atualizada, com casos clínicos e um índice, propus-lhe... na condição de que sua primeira editora lhe devolvesse os direitos – o que foi feito, após uma rápida troca de cartas com Michel Prigent, então presidente do conselho de administração da Puf.

A reedição deste livro foi, portanto, meu primeiro contato com o pensamento e a escrita de Dayan. É claro que já tinha ouvido falar dele antes -– sua reputação como psicanalista e professor universitário já era consagrada; sua importância teórica e prática na implantação da psicanálise como disciplina autônoma na universidade já era reconhecida (e sem dúvida será muito mais enfatizada no dia em que novos estudiosos olharem para a história da psicanálise francesa). Além disso, quando o conheci, por volta dos seus 75 anos de idade, este modesto filho de carteiro, egresso da École normale, “agrégé” de filosofia, ex-professor universitário[1] e estimado psicanalista trabalhando ao lado de colegas eminentes como Jean Laplanche, Pierre Fédida, Piera Aulagnier ou Joyce McDougall, já havia em grande parte forjado um pensamento próprio, publicado cinco livros magistrais e dezenas de artigos, alimentado por duas décadas a importante revista Psychanalyse à l’université . No papel de seu editor, eu teria a honra de assumir não só a nova edição do Le rêve, publicada por mim em 2010, mas também, quatro anos depois, do Dire et devenir, que seria infelizmente seu último livro.

 “O sonhar –escrevia Maurice no Le rêve nous pense-t-il? –  procede sem o sustento de um ‘eu penso’, sem objeto ou projeto. Ele não julga, não subsome por meio de categorias a experiência que acontece, não cria para si mesmo a representação de um conjunto de predicados ou relações”.

“O sonhar procede sem o sustento de um ‘eu penso’”, argumentava Maurice, porque, segundo ele, esse eu procede do sonho, do qual é a criação feliz e oportuna. Assim, quando o centro do debate psicanalítico mais contemporâneo do mundo era ocupado pela questão da rêverie, ou seja, pela questão da produção de conteúdo psíquico sob forma de representáveis, Maurice ia contra a corrente do bionismo francês emergente para afirmar a irredutível, a inabalável, a incomensurável especificidade do sonho como um modo independente e singular do pensar. Para ele, o sonho não era um simples declínio do pensamento vigil, nem mesmo uma camada mais profunda da rêverie, mas sim um modo de pensar outro (como ele mesmo dizia), do qual o sonhador é a testemunha passiva, “o efeito-sujeito do pensador sonhante, forçado a seguir uma sequência na qual improvisadamente as excitações endógenas tomam forma de eventos”.

Ora, esta inversão do sujeito que pensa (seu sonho) para o sujeito que é pensado (ou mesmo criado por seu sonho), este proceder intransigente, no qual Dayan insistia, e que afasta do processo de subjetivação toda e qualquer qualidade da consciência, é, em minha opinião, o que o coloca na linha direta de uma conceituação freudiana radical da psicanálise.

 

E o ser que vacila...

Mais tarde, em Dire et devenir, serão abordados os efeitos da linguagem no processo analítico — de fato, outra forma de tratar este mesmo tema da inconstância do ser subjugado pelo inconsciente, na medida em que ele (o ser, l’être) não pode ser tido como uma substância perene e fixa, já que sob influencia da linguagem, do fantasma e subordinado às fissuras da consciência:

“Cada um se agarra ao que pensa ser, embora de fato esteja em constante devenir, tanto longe quanto perto de seu próprio inconsciente”.

“O devenir psíquico é o que ninguém decide. O que induz o dizer, no processo contínuo que deporta o ser falante, são inflexões deste mesmo devenir, do qual só se sai pelo bel-prazer do fantasma, e não pelas modificações de um sujeito pretensamente substancial que se manteria firme como um ‘si mesmo’”.

Teoria crítica do sonho, teoria da fala na sessão, constituição e devenir (nunca completos) do sujeito: eis o cerne do trabalho de Dayan, um conjunto de temas que o tornam um analista fundamentalmente inscrito na linhagem francesa (e pós-lacaniana) do movimento psicanalítico, embora tópicos como a realidade e a psicose também o interessassem na época de sua grande amizade com Aulagnier.

Com o passar do tempo, e pela vontade de seus projetos de escrita, Dayan e eu nos encontrávamos cada vez mais. Primeiro, falávamos sobre psicanálise, depois edição, depois política, depois estética, e enfim conversávamos sobre nossas próprias vidas. De encontro em encontro, ‘Dayan’ se tornou ‘Maurice’, um amigo. Com grande delicadeza, e sempre com alguma solenidade (eu era seu editor!), ele me convidava para jantar, escolhendo com desvelo os restaurantes, que ele inspecionaria pessoalmente um ou dois dias antes de me dar o endereço. Ao cabo de dez anos, acho que passamos em revista todas as boas (e às vezes não tão boas) mesas do bairro.

Maurice era um homem orgulhoso, absoluto e altivo. Ele adorava o alpinismo e a escalada, que praticava periodicamente, na maioria das vezes sozinho e mesmo em sua velhice. Procurava sempre chegar ao ponto mais alto, deixando para trás, lá embaixo, bem embaixo, ao nível do chão das rãs, as reles disputas de ego, a politicagem universitária, a luta pelos cargos ou pelo lugar à direita do Pai, todas essas atividades estafantes que devoravam os (vaidosíssimos) círculos intelectuais de seu tempo.

Ele morava pros lados de Saint-Jacques, mas os percalços da vida fizeram com que acabasse mudando para um belo apartamento a três edifícios distantes do meu, no bairro de Plaisance. Gostávamos de nos cruzar na portaria de nossos prédios, na esquina da rua ou na feira, e de palavrear mais ou menos longamente, dependendo de nossas agendas do dia. Às vezes, eu só o via de longe, subindo a rua Didot, o passo leve, a mochila nas costas, a verticalidade seca e concentrada do escalador que ia encurvando com a idade.

Da águia ao junco, Maurice se adaptava aos rigores da velhice com muita dignidade. Na maioria das vezes, ao ar severo e atormentado (como o traço de Soutine que ele tanto valorizava), somava-se ainda um sorriso sincero, transbordante de gentileza e solicitude.

A última vez que o vi, se locomovia com dificuldade mas insistiu em se levantar para me acompanhar em passos lentos e dolorosos até a entrada do elevador : queria me abrir a porta, uma porta que se tornara dez vezes mais pesada do que ele, mas que mesmo assim desejava a qualquer custo segurar e esconder de mim todo o seu cansaço.

Não sabia que não o veria mais... Descanse em paz, meu amigo. Longa vida à sua obra. Ela está aí, pronta para ser (re)descoberta por aqueles que virão depois de nós.

Paris, junho de 2020

Ana de Staal

Tradução: Roberto Oliveira


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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