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TÍTULO DE ARTIGO


 

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ÍNDICE TEMÁTICO 
64
Ter remoto Pensamentos em tempos pandêmicos
ano XXXII - Junho de 2020
163 páginas
capa: Augusto de Campos
  
 

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Resumo
Neste texto busco aproximar a problemática do mal ao campo epistemológico da psicanálise. Para tanto, adoto como base os desenvolvimentos propostos pela psicanalista Nathalie Zaltzman. Seu pensamento, expandindo-se para além da afirmação freudiana sobre a indestrutibilidade do mal, aponta para um paradoxo: o mal persiste justamente por se elidir, mesmo se submetido ao trabalho da cultura.


Palavras-chave
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae


Autor(es)
Mara Selaibe
é psicanalista, aluna do curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e Mestre em Psicologia Social.


Notas

1.N. Zaltzman, L'esprit du mal, 2007, p. 30. Todas as traduções neste artigo são livres e feitas por mim a partir do original em francês.

2.J.-B. Pontalis, "Argument", in Le mal.

3.N. Zaltzman, A pulsão anarquista, 1979, p. 55.

4.N. Zaltzman, op. cit, p. 79.

5.N. Zaltzman, "Homo..." in La résistence de l' humain, 1999.

6.S. Freud, Totem e tabu, 1913.

7.N. Zaltzman, op. cit., p. 14.

8.N. Zaltzman, L'esprit.

9.S. Freud, Moisés e o monoteísmo, 1939.

10.    R. Antelme, A espécie humana, 1947.

11.    N. Zaltzman, L'esprit.

12.    S. Freud, 31° conferência, 1932.

13.    N. Zaltzman, op. cit, p. 82.

14.    N. Zaltzman, De la guérison psychanalytique, 1998, p.14.

15.    S. Freud, 23a conferência, 1916/17.

16.    N. Zaltzman, L'esprit... p. 11.

17.    S. Freud, Totem...

18.    S. Freud, Vue d'ensemble des névroses du transfer, 1915.

19.    N. Zaltzman, op. cit., p. 59.

20.    N. Zaltzman, op. cit., p. 87.

21.    N. Zaltzman, op. cit., p.69.

22.    S. Freud, Considerações atuais sobre a guerra e a morte.

23.    N. Zaltzman, op. cit., p.23.

24.    S. Freud, 31° conferência...; N. Zaltzman, L'esprit....

25.    N. Zaltzman,"Homo Sacer:..."in La résistence... , p. 14.

26.    N. Zaltzman, L'esprit..., p. 109.



Referências bibliográficas

Antelme R. (1947/ 2013). A espécie humana. Trad. Maria de Fátima Oliva do Couto. Rio de Janeiro: Record.

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Pontalis J.-B. (direction). (1988). Argument. In: Le mal. Paris: Gallimard.

Zaltzman N. (1979/1993). A pulsão anarquista. Trad. Anna Cristina Ribeiro Aguilar; revisão técnica e da trad. Mônica M. Seincman. São Paulo: Escuta.

____. (1998). De la guérison psychanalytique. Paris: P.U.F.

____. (1999). Préface; Homo Sacer: l'homme tuable. In: ____ (org.). La résistance de l'humain. Paris: P.U.F.

____. (2007). L'esprit du mal. Paris: l'Olivier.





Abstract
In this text, I attempt to approach the problem of the evil in the epistemological field os psychoanalysis. Therefore, I adopt, as a base, the developments proposed by the psychoanalyst Nathalie Zaltzman on this subject. Her thought, besides the Freudin statement about the indestructibility of the evil, expands itself and points out a paradox: the evil persists exactly by supressing itself, even if submitted to the work of the culture.


Keywords
evil; inhuman; primordial identification; narcissistic libido; Kulturarbeit and civilizational regression.

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 TEXTO

A dimensão psíquica do mal, ou a barbárie de Eros

The psychic dimension of evil, or Eros’ barbarism
Mara Selaibe

[o mal] designa alguma coisa que não deveria ter lugar, um acontecimento em que um agente ativo é humano e que golpeia a vida, o corpo, o espírito de um indivíduo, de uma coletividade, de um devir da humanidade.[1]

 

A questão

A temática do mal se inclui nas reflexões da teologia, da filosofia, da moral, do direito. Outros saberes são também convocados a pensar a respeito. A psicanálise está implicada nessa tarefa e não pode deixar de participar do debate atual. Diante da questão do mal, suas bases epistemológicas são diferentes daquelas dos outros saberes. As noções e conceitos que operam no campo psicanalítico implicam reconhecer a imanência do mal no humano, levando-nos a refletir amplamente sobre a expressão de Freud quando afirma o mal como um traço indestrutível.

As sociedades que se propuseram a eliminar o mal chegaram às raias do impensável nas práticas de realização de seus objetivos. O extermínio foi a marca de seus atos legitimados sobre argumentos da moral pervertida.[1] E, em decorrência, nos defrontamos com a História, que nos pergunta: como isso foi possível? Remete-nos a desdobrá-la na atualidade: como isso permanece possível? Sendo o mal um traço indestrutível, será transformável? Em que medida, em qual direção? Transformável individualmente?... Coletivamente?...

Tais perguntas ecoam no pensamento de Nathalie Zaltzman. Falecida em 2009, legou-nos um conjunto de textos que, em sua complexidade e originalidade, seguem alimentando debates sobre essa importante temática psicanalítica. Relembremos sua obra inicial: A pulsão anarquista (1979). Nesse trabalho está desenvolvida a análise de um dos destinos das pulsões de morte a serviço, justamente, da vida. Tal destino se faz presente quando a atividade de desligamento, própria das pulsões de morte, age para desfazer, para romper o fechamento e o enrijecimento estabelecido pelo "Eros totalitário", o Eros da "relação narcísica primária", o Eros da psicologia das massas aglutinadoras, o Eros contrário à individuação?- cuja medida é o Um, é a "Unidade-Identidade". Essa ação da pulsão anarquista visa estabelecer condições básicas para uma saída vital diante de uma situação fechada sobre si mesma, imobilizada, e em conluio com a morte real.

O estímulo da morte reúne as forças da pulsão de morte. Numa relação de forças sem saída, somente uma resistência oriunda de suas próprias fontes pulsionais de morte pode enfrentar a situação de perigo mortal. Chamo essa corrente da pulsão de morte, que é a mais individualista, a mais libertária, de pulsão anarquista.[2]

A "dimensão de protesto vital"?- desintrincamento pulsional e desinvestimento próprio da pulsão de morte em seu modo anarquista?- pode responder mais efetivamente a certas formas de vida nas situações limite tratadas na clínica psicanalítica ("os fugitivos, os toxicômanos, os caracteriais, os ‘psicossomáticos' e tantos outros..."), bem como nas situações concentracionárias e totalitárias. Em todas elas, o investimento essencial tem de se manter na ordem da necessidade, uma lógica diferente daquela do desejo. Lemos, então: "[...] é a pulsão anarquista que, ao se apropriar da pulsão de morte a serviço da vida, fornece a energia necessária à luta."[3] A busca pela sobrevivência deve ser sustentada no nível da necessidade presente; isso para preservar a pessoa contra a morte real em decorrência da espoliação sofrida do mundo humano desejante. É condição sine qua non cortar as ligações com as lembranças, imaginações, buscas pelo passado, alimentação de desejos a serem realizados porque cada uma dessas possibilidades enfraquece o sujeito colocado diante da tarefa de resistir à absoluta ameaça à qual está submetido. Confrontado ao perigo de morte real?-seja ele advindo de uma doença grave, seja de uma ameaça externa ao sujeito?- é preciso apenas se sustentar pela força capaz de permanecer no presente da batalha exigida para se manter existindo e resistente. Nenhuma criação de objeto de desejo deve estar atuante, sob o risco de o sujeito psíquico fraquejar e, então, sucumbir em razão de Eros. Nada além de concentrar esforços para o aqui e agora de cada momento da resistência.

Já em seu livro De la guérison psychnalytique (1998), bem como no artigo "Homo Sacer: l'homme tuable"[4], ela trabalha sobre a realidade material do assassinato do pai da horda primitiva. Tal como afirmado por Freud[5], Zaltzman argumenta sobre o fato de que, ao longo da história humana, "a prática do assassinato" tem sido travestida, de maneira a ser circunscrita e regulada pela ordem humana: o sacrifício religioso, a defesa de si, da sociedade e da Pátria. Sob essas formas, o assassinato é legitimado como uma ação racionalizada ideologicamente, deslocada, simbolizada e, inclusive, interditada, condenada e punida dentro dos termos da lei.

Contudo, note-se, o assassinato jamais foi suprimido da organização humana e no século 20 alcançou a vida de milhões de pessoas fora de qualquer jurisdição: um tipo de ação assassina legitimada perversamente, que deixa às claras que o homem pode excluir outros da realidade humana comum. Pior: o assassinato cometido pode não ser considerado assassinato. Tal feito aponta para questões radicais: "Como pensar doravante [a partir dos campos de concentração e dos gulags] o crime nu, a vida reduzida a um bios puramente degredável, e o homem definido como matável?" Ou, "Estaríamos atualmente imunes a essa cegueira? Como saber se em certas circunstâncias não praticaríamos a mesma política de avestruz?"[6]

E será, então, em seu último livro, L'esprit du mal (2007), que retomará direta e verticalmente alguns aspectos apenas assinalados em A pulsão anarquista. Agora aprofundará, em muito e de maneira especial, a problemática do expansionismo narcísico de Eros em conluio com a ordem social, que age sobre as pulsões sexuais em ressonância com essa ordem. Diante de tal perspectiva da libido narcísica, a autora formula perguntas a respeito dos nossos limites no enfrentamento do mal radical; o mal, cuja ação totalitária decide que a vida do outro é supérflua e a elimina; o mal que ao atingir a civilização ocidental no século passado conduziu "a um novo estado da civilização onde, desaparecendo progressivamente na massa, é a morte e seus ídolos que o homem reverencia e celebra. Essa reverência, essa celebração, [sendo] o mal absoluto."[7]

Essa obra instigante aborda o trabalho da cultura (Kulturarbeit), o "progresso da vida do espírito"[8] frente à dimensão psíquica do mal. Com ela somos levados a revisitar a obra freudiana com novas possibilidades reflexivas. Isso ela o faz examinando situações jurídicas instauradas no período pós Segunda Grande Guerra?- em especial analisando o Estatuto do Tribunal de Nuremberg, de 1945, no momento no qual cria a noção jurídica de crime contra a humanidade.

 

A espécie humana

Em 1945, o Estatuto do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg incluiu o crime contra a humanidade em seu artigo 6, parágrafo c:

Crime contra a humanidade: a saber o assassinato, o extermínio, a escravização, a deportação e outros atos inumanos cometidos contra todas populações civis antes da guerra ou durante a mesma; a perseguição por motivos políticos, raciais ou religiosos em execução daqueles crimes que sejam de competência do Tribunal ou em relação com os mesmos, violem ou não a legislação interna do país onde se perpetraram.

Em 1945, Robert Antelme fora resgatado por François Mitterrand do campo de Dachau, na Alemanha. Sobreviveu com muita dificuldade à tifo avançada, contraída no campo. Dois anos depois, lançou sua obra magistral A espécie humana[9], em que narra como os seres humanos resistiam, em condições abjetas, ao pior da crueldade exercida por outros homens. Suas descrições apontam para a vida que se mantém por estar aferrada à defesa obstinada da sobrevivência. Em suas reflexões registra para sempre a ideia de que ninguém pode ser colocado para fora da espécie humana; ninguém tem direito de negar, anular ou destruir essa inclusão comum. Antelme dá precisão ao fato de que nessa concepção estão incluídos todos, mesmo o carrasco. O carrasco como semelhante e não como inumano. Não pode haver qualquer categoria de exclusividade no conjunto humano.

Nathalie Zaltzman[10], precisamente, destaca a palavra inumano, do Estatuto do Tribunal de Nuremberg. Esse termo fora aplicado para designar atos nefastos, cujas legislações de guerra, bem como legislações de crime comum de cada país, não os incluíam. E lança indagações ainda persistentes: se os crimes ali designados eram atos inumanos, quem responderia por eles? Quem estaria fora da espécie humana e, portanto, seria inumano? Possibilidade impossível! Na concepção de crime contra a humanidade o que está sendo defendido é o pertencimento inalienável de cada e de todo indivíduo à espécie humana. Se apenas a vítima estiver contida na espécie humana, o mal radical será dela suprimido, não terá fonte nem responsável. Um crime sem autor?

Sim, na análise da redação jurídica do Tribunal de Nuremberg a respeito do crime contra a humanidade, a autora deslinda o triunfo de uma concepção mais uma vez idealizada e sacralizada que busca eliminar a imperiosa força assassina do gênero humano. Isso corrobora para a concordância entre o eu e seus ideais, abrindo, portanto, uma brecha para escapar do princípio de realidade. Essa concepção lança na indeterminação a autoria do crime, por deixar fora da categoria de humanidade o assassino desfigurado.

Entretanto, a questão sublinhada tem linhas de complexidade. É fundamental o fato de se haver garantido num tribunal internacional o estatuto jurídico assegurador de proteção à humanidade. Trata-se de uma conquista como um efeito do trabalho da cultura (Kulturarbeit)?- conforme o desenvolvimento realizado por Freud[11]. Nessa conferência, sabemos, ele concede especificidade à noção de Kulturarbeit a qual passa a nomear, desde então, os movimentos que ocorrem entre as instâncias, intrapsiquicamente, no transcurso de uma análise?- Wo Es war soll Ich werden (onde era isso o eu deve advir). Assim, o processo civilizatório se diferencia do trabalho da cultura: aquele responde pelo recalcamento pulsional que opera mantendo estrangeiros, inconscientes, impedidos de serem pensados conteúdos psíquicos transgressivos à própria ordem civilizada. Já o trabalho da cultura se dá no processo que busca e permite tornar consciente o inconsciente, ratificar as trocas entre o isso, o eu e o supereu, tomar em conta o princípio de realidade interferindo no programa de prazer da realidade psíquica.

A introdução do crime contra a humanidade, no escopo jurídico internacional, opera a inclusão ao nível da consciência?- instância psíquica e consciência de maneira genérica?- do que estivera inconsciente até aquele momento. Pela via jurídica inscreve-se psiquicamente a categoria comum a todos os humanos. Essa inscrição implica uma relação essencial, afetiva e moral da espécie consigo mesma. O Kulturarbeit torna pensável, pela própria espécie, o acontecimento impensável das ações nos campos de concentração e nos gulags: nessas condições a representação de espécie humana foi destruída pela mesma e a inclusão jurídica do crime contra a humanidade recupera a representação da espécie como um possível para a própria espécie.

Lembra-nos a autora: "Essa nova consciência da humanidade, esse novo valor cultural, jurídico e moral, se inscreve no capital das ideias coletivas e individuais e, via instância do eu, pode modificar os limites instintuais, as condutas criminais."[12]

Trata-se, nesse caso, de um ganho referido por uma categorização psicológica jamais nomeada até então: a espécie humana?- aquela da qual ninguém pode ser excluído, e que legitima o sentimento vital de todo humano. Se a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) veio definir um conceito de humanidade em que cada qual tem garantida, ao menos juridicamente, sua posição individual na coletividade, os crimes contra a humanidade foram responsáveis por criar algo como um "aquém da humanidade" em que milhões são radicalmente excluídos do direito de existir, por serem considerados integrantes de uma subespécie. Por isso, ao garantir o pertencimento à espécie humana o Estatuto do Tribunal de Nuremberg acarreta uma proteção diversa e mais básica da que passa a ser garantida pelos direitos individuais.

Contudo, o termo inumano marca uma falha da conquista do Kulturarbeit por tornar o próprio mal invisível em sua fonte humana.

O mal: traço indestrutível,
porém sempre elidido

Kulturarbeit é uma noção compósita que Zaltzman entende

[...] como uma entidade libidinal global comum a todos os humanos, organizada por uma identificação primordial inconsciente, essa do pertencimento à espécie humana. Essa identificação primordial é a herança filogenética condensada da história da humanidade lutando contra um assassinato inaugural que instaura os inícios históricos de uma filiação paterna e o início da história comum do conjunto humano.[13]

Nessa concepção de Kulturarbeit encontramos incluída a formulação freudiana[14] de que as fantasias originárias presentes hoje no psiquismo dos sujeitos, nas quais os analistas reconhecem a realidade psíquica, foram parte da realidade material da família humana em tempos imemoriais da espécie. Assim, o trabalho da cultura, como "uma instância de lucidez psíquica"[15], é capaz de subverter tabus e de não se restringir diante de qualquer interdito de pensar, não busca se prender a idealizações ou a qualquer idealidade consensual social, nem se ligar a falsos arranjos típicos da moral sexual civilizada.

Mas como, então, entender esse movimento regressivo, no interior do trabalho da cultura, precisamente no momento da elaboração do Estatuto do Tribunal de Nuremberg? Por que ele implicou uma elisão do mal, ao fazer uso do termo inumano, a ponto de o mal não vir a ser reconhecido como próprio de toda espécie humana? O termo inumano garantiu que o mal permanecesse exterior à espécie. E ela mesma resulta, pois, um conceito limpo, pleno, idealizado.

Se o trabalho da cultura viabiliza uma transformação dos pensamentos inconscientes em representações de palavra, numa organização linguística partilhável, pensável[16], o que permite que o mal se mantenha como traço indestrutível no humano?

Todavia, o trabalho da cultura não tem linearidade. Tal como é preciso atentar no modelo do trabalho analítico?- conflitos entre as instâncias, cada qual com suas leis de funcionamento e suas interdependências, níveis de recalcamento e de contra investimentos, maior ou menor intensidade das defesas...?- o Kulturarbeit também não se resume a um ganho de consciência a partir do qual a humanização se acumula num crescente. Para além da "lucidez psíquica" é necessário não esquecer de que a ela se sobrepõem outros recalcamentos. E, de outra parte, o ganho de consciência diz respeito ao eu e o eu é, conforme Freud[17], uma instância que se desenvolve no processo de humanização de modo dependente da história da humanidade. Assim, O trabalho da cultura é, então, uma noção transindividual supra coletiva[18] de apropriação de um elemento do isso pelo eu?- mesma apropriação reivindicada pelo trabalho de análise.

A problemática da realidade material, mais acima citada, encontra-se presente na base dos trabalhos de Zaltzman. Freud a entendia como acontecimento filogenético que sustentava o registro do traço mnêmico relativo ao assassinato do pai da horda primitiva. Zaltzman também reconhece o "assassinato como mal originário"[19]. Do assassinato ao interdito encontramos o primeiro ato civilizatório. No entanto, esse mesmo ato civilizatório não se torna trabalho de cultura?- progresso psíquico realizador de ganho de consciência sobre o recalcado?- por ação de um mecanismo psíquico que, segundo a autora, não é propriamente nem recalcamento, nem clivagem, nem recusa. "É o interdito [de pensar] que se encontra em seu lugar, o contrainvestimento do recalque originário."

O trabalho da cultura tropeça numa insuficiência para pensar o mal no momento mesmo em que se realiza como trabalho da cultura. Um paradoxo inultrapassável. Há, dessa maneira, "um fracasso em pensar o mal". A evolução do trabalho da cultura ocorre no interior de uma zona obscura, zona de repetição sem pensamento possível. Zaltzman parece nos deixar diante de uma dimensão enigmática da vida psíquica.

O Kulturarbeit é capaz de modificar heranças ancestrais ao ampliar o território da vida psíquica realizando o trabalho de humanização. E, no entanto, mesmo havendo avanços persiste um impedimento ao pensamento, a zona obscura instaurada pelo recalque permanece apesar de sabermos sobre o recalque! Zaltzman atribui a manutenção dessa zona incógnita, fonte de repetição, ao fracasso de pensar exatamente o mal. Segundo ela, se a ampliação da consciência gerada pelo trabalho analítico permite reconhecermos a presença do mal, ela o reconhece no exterior de nós?- nos fatos e nos atos?- ou o deduz pelo sentimento de culpa inconsciente. Mas ela não designa o mal no psiquismo. E a autora afirma: "Tudo se passa como se a dimensão psíquica do mal pudesse ser reconhecida, mas que a representação de coisa dentro da qual se ancoraria a designação pela palavra se volatilizasse."[20] Assim sendo, a representação de palavra permanece esvaziada de sentido, aquém da possibilidade de elaboração e de reconhecimento do mal intrínseco a cada qual e à espécie. Podemos nos perguntar se isso se passa tal como acontece com a representação de cada um a propósito de sua própria morte.

Portanto, seguindo esse modo de entendimento, a civilização implica um trabalho de cultura que se freia diante da tarefa que, no entanto, já começou a realizar. Eis a fonte de sintomas, inibições e angústias: o mal-estar na civilização decorre, por consequência desse modo de pensar, dessa ordem filogenética do assassinato jamais tornado consciente. Em decorrência, no que diz respeito à esfera do mal, sustentada no assassinato primeiro e alienado nos confins do inconsciente, todo acréscimo de consciência e inteligibilidade implica, ao mesmo tempo, uma regressão do individual à massa, uma fusão efetuada pelo Eros narcísico indiferenciante ocupado em elidir o mal, impedindo a consciência de saber e pensar, apropriando-se desse conhecimento.

A pergunta chave pode ser recolocada: se houvesse o reconhecimento elaborativo do parricídio recalcado, esse reconhecimento seria condição suficiente para que não mais se repetisse tal regressão civilizatória à barbárie? E é importante precisar: para Zaltzman, e de acordo com Freud[21], a regressão civilizatória implica a criação de uma organização inédita, não uma pré-história da humanidade, mas uma pós-história humana, como essa vivida no século 20, na consumação dos campos de extermínio e dos gulags. Uma regressão narcísica da libido que leva a um modo de organização diversa da original. Ela escreve:

 

 [...] nisso que nomeamos, por facilidade, as barbáries do século 20, algumas se caracterizam por uma emergência de satisfações pulsionais sem freio, mas mais ainda por uma regressão das instâncias egoicas individuais e coletivas. A libido narcísica individual tende a se indiferenciar em proveito de uma expansão narcísica coletiva, uma expansão da "substância comum" evocada por Freud como o material inicial de uma psicologia das massas.[22]

 

Ou ainda de outra forma: se o trabalho da cultura, se "o alargamento do campo do Eu sobre as terras estrangeiras do Isso"[23] alcançasse o parricídio, tornando seu ato reconhecível e pensável, haveria como manter alguma esperança para o futuro humano depois dos descalabros do século 20, da ação real das forças de destruição e de autodestruição?

É preciso relembrar: o parricídio estrutura o complexo de Édipo. De geração em geração permanece a herança do assassinato primordial sendo vivido por cada um em sua própria realidade psíquica. Mas as elaborações dessa herança, que lida com a presença fantasmática de um pai terrificante e de intensidades pulsionais apaixonadas, busca transformar parte do mal absoluto ao visar outra posição de filiação, agora simbólica. Sim, mas também sabemos que se essa parte do mal originário pode ser transformável, ainda assim não será todo ele que será transformável. O interdito de matar ("Não matarás!") pode validar o assassinato do pai da horda como sendo mito originário. Porém, o crime de Estado, a máquina fria concentracionária do assassinato que decide sobre a vida e a morte, implica a crueza do ato, e "faz do assassinato [...] o ato no interior da realidade humana."[24] Aqui já não se trata mais de uma teoria especulativa ou de um mito de fundação.

Para os dias que correm, permanece seu alerta:

[...] o espírito do mal?- não pertence exclusivamente às forças pulsionais de um sujeito, não mais que às células do organismo psíquico vivo que é a massa. Seu encontro, sob condições históricas particulares, produz um amálgama inédito. Ele afeta e modifica os eus individuais e seus ideais coletivos. Ele engendra uma neorrealidade psíquica e social que devém hermética a todo espírito crítico. O trabalho da cultura, a tomada de consciência se torna impotente para entrar em contato com isso que a neorrealidade recalca.[25]



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